Depois de uma noite (muito) mal dormida, com a escuridão total e o mini-saco-cama a atrofiar-me os movimentos, e com um toc-toc-toc extremamente irritante, não custou nada levantar rapidamente às 07h30. Sim, pela primeira vez em longas semanas, acordo com os primeiros acordes da Hard Sun. Hard Sun que nos esperava lá fora. Mais um dia de sol intenso, misturado com a brisa fria da manhã.
Novamente escrevo sentada nesta alcatifa, ao som de uma suave música clássica.
A chegada, aos poucos, destes irmãos que vestem branco e vivem desta comunidade, anuncia o início de mais uma oração da noite. Este momento, que se repete apenas há dois dias, faz-me sentir que nada é novo, e que já aqui estou há muito tempo.
Iniciar o dia com os cânticos de Taizé é algo que agora me parece indispensável.
Seguir para um pequeno-almoço onde encontramos um sorriso na finlandesa que dá o pão, outro sorriso no chinês que serve o chá e na francesa que dá a manteiga, é surreal e faz-me pensar no contraste com o Sr. do café da rua que serve a torrada com ar de quem está-aqui-a-fazer-um-favor-porque-senão-não-tinham-pão-nem-cefé-por-isso-peçam-calem-se-agradeçam-e-voltem-amanhã.
Gostava de conseguir levar para casa um décimo dos sorrisos (sinceros e verdadeiros) que encontro aqui, e distribuí-los no regresso a casa.
Gostava de levar só um bocadinho da simplicidade de quem aqui anda descalço, um bocadinho da honestidade de quem não entra na camarata de porta aberta, um bocadinho da boa vontade de quem esfrega o chão da cozinha a dançar.
Sentada nesta alcatifa, lembro-me que há umas horas atrás a aspirava.
Uma breve explicação, um aspirador industrial para as mãos e toma lá um bocado de chão para limpar. Com todo o prazer!
Não há melhor compensação do que a de saber que, com uma hora de suor e trabalho de braços, contribuo para que esta comunidade não páre.
Temos uma vantagem... não enfrentamos a fila para o almoço durante toda a semana. Almoçamos num cantinho debaixo das árvores, sentados na relva, ao som dos pássaros. Um arroz com bacon e milho, a tigela de água, um pedaço de pão com um quadradinho de manteiga de alho, uma laranja e dois, três, quatro, cinco dedos de conversa com duas suecas, três alemães, duas espanholas e uma finlandesa.
Já disse que estes momentos são ricos na simplicidade? E que nessa simplicidade encontro sempre o melhor da vida? Já disse que é tão bom decidir o que vestir às escuras, em dois minutos? E não sentir necessidade de pôr risco preto nos olhos para me sentir mais bonita?
É tão bom não querer parecer, não querer aparecer, não querer ser mais do que se é.
Antes do trabalho, reunimo-nos em grupos, na terra, no chão, na erva molhada e falámos. Conhecemo-nos, apresentámo-nos, o que fazes aqui, porque vieste aqui, quantas vezes vieste, vais voltar?
A partir de hoje, todos os dias da semana vamos ter esta rotina. E como alguém dizia... parece que já a temos desde sempre. Que sempre foi assim. E apetecia-me tanto que fosse assim durante mais tempo.
Jantar. Depois de uma hora de sono, meia hora de fila para jantar. Puré, outra vez puré. Com ovo cozido. E? Sabe bem... e com puré... nada melhor que já haver caras conhecidas nos bancos corridos.
Seguimos para a oração da noite. Hoje bateu um bocadinho mais forte. Alguma coisa muito estranha, indefinida, aconteceu. Sequência de pensamento: irmãos-comunidade-pessoas de todo o mundo que podem vir para aqui-que são felizes aqui-eu-carro-casa-trabalho-casa-contas-pressão-dois dias off sem total tranquilidade por semana-questões-questões-decisões-questões-posso ser feliz sem o que tenho?-acho que posso-posso-a minha vida faz sentido neste momento?-não sei-o que me faz falta?-tanta coisa-o que não me faz falta?-tanta coisa-o que quero ser quando for grande? Peço respostas. Sinto calor. Sim, está calor nesta sala. Não, é mais forte, vem de dentro. Passou. Já não sinto nada. Amanhã volto.
Capuccino ao relento.
"Está uma tempestade insuportável em Lisboa!" Aqui não, ainda bem que viemos.
Uma lua enorme, um céu como nenhum que tenha visto - o céu de Taizé - levam-nos de volta à camarata. Banho quente, conversa ao ar livre, dormir.
Solo la sed nos alumbra.
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